ORLAN, artista francesa, reconhecida pela sua abordagem ousada, desafia o determinismo social e político, a supremacia masculina e os padrões estéticos de beleza convencionais.
Para expressar as suas ideias, utiliza o seu corpo como suporte de experimentação e suporte visual. Usa diversos meios de representação como a escultura, a fotografia, a performance, o vídeo, a inteligência artificial, a robótica, a cirurgia e a biogenética. Ao longo do seu percurso tem recebido numerosos prémios e destaca-se como uma das artistas mais influentes da sua geração.
No contexto da sua vinda a Portugal e da exposição na galeria do CPS no CCB, apresentou a sua nova série de trabalhos Femmage. Inspirada por figuras como Marie Curie, a Imperatriz Eugénie, Simone Veil, Hedy Lamarr ou Rosa Parks, com quem se hibridiza, questiona os estereótipos de género e celebra a complexidade da identidade humana e os feitos destas mulheres admiráveis. A curadora Alexandra Silvano entrevistou a artista.
Quem é ORLAN?
Eu sou ORLAN, entre outros, e na medida do possível. Cada letra do meu nome está escrita em letra maiúscula porque não quero ser classificada, não quero que me voltem a meter na linha. Escrever em maiúsculas é como escrever em escrita inclusiva, é político e feminista. Para uma mulher, escrever em maiúsculas significa sair da sombra, sair da timidez imposta, aparecer. Como escrevi na minha autobiografia “Strip-tease tudo sobre a minha vida, tudo sobre a minha arte”, publicada pelas edições Gallimard, ser mulher é uma calamidade biológica e social.
Na Wikipédia dizem que ORLAN se escreve em letras maiúsculas, mas escrevem em minúsculas. Esta é uma luta difícil de travar! Muitos consideram-me uma artista da performance, mas eu afirmo que sou simplesmente uma artista. As minhas performances causaram muitas vezes escândalo e por isso originaram programas de televisão e grandes manchetes nos jornais. Sou uma artista que não está sujeita a um material, uma prática artística, um determinado modo de falar, uma técnica ou a uma tecnologia, seja antiga ou recente. Procuro falar de assuntos que acho importantes para o meu tempo, questionando os fenómenos sociais, sempre com a necessária distância crítica. É claro que o efetuo depois de uma avaliação e síntese, questionando qual a carne, qual a materialidade e qual o estilo que será mais adequado para apresentar essa ideia, para a fazer viver, para revelar materialmente o conceito pretendido.
Para mim o conceito da obra é a sua coluna vertebral, só depois o estilo. Os materiais são a carne. Sou uma artista conceptual que ama a carne, a forma e a cor.
Considero o corpo como um material entre os materiais porque sou um corpo, nada mais que um corpo, um corpo inteiro e é o meu corpo que pensa.
Esteve em Portugal pela primeira vez em 1977. Como foi essa experiência?
Em agosto de 1977 fui convidada para ir às Caldas da Rainha, no âmbito dos Encontros Internacionais de Arte (1974-1977) organizados por Jaime Isidoro e Egídio Álvaro. Nessa ocasião criei importantes obras plásticas e performances de rua e em instituições. Foi muito importante a existência de locais que apoiassem a performance. Vivia-se uma época onde o público e o meio artístico ainda não estavam recetivos a esta prática. A minha criação foi vestir-me com a minha própria nudez e andar por jardins públicos com um vestido de tela fotográfica com a representação do meu corpo nu. Os policias chamaram-me exibicionista, mas nada podiam fazer uma vez que eu estava vestida dos pés à cabeça e tinha na carteira os documentos de identificação.
Eu queria mostrar a existência de uma brecha na vida pública, onde as pessoas se representavam em vez de se apresentarem. Nesse sentido, a performance atua no espaço real ao perturbar o relacionamento, ao tornar o encontro com o outro, crítico.
Performance de ORLAN, mercado das Caldas da Rainha, 1977
Decidi também vender num mercado de legumes, dentro de um carrinho, representações fotográficas a preto e branco, de partes do meu corpo, expostas como um produto alimentar. Os preços, apresentava-os numa placa que tinha escrito “Será que o meu corpo me pertence? Garantido, ORLAN pura sem corantes nem conservantes”. Georges Poncet, um amigo e excelente fotógrafo, recordou-me que fomos violentamente atacados no mercado por um grupo de reacionários que nos seguiam e ao festival. Decidi então criar uma grande instalação de parede com todos os fragmentos do meu corpo. Tratava-se de questionar a maneira como a representação fragmentada transforma a nossa relação com a realidade. Esta problemática da objetivação e divisão corporal leva à questão sobre o direito de dispor do nosso corpo, em ligação com o contexto histórico e social, o direito de vender a representação do corpo, sendo que a venda do corpo é proibida. Ainda vendi os meus beijos, a minha carne colocada em relicários e os fragmentos fotográficos do meu corpo.
Por outro lado, propuseram-me apresentar uma grande instalação no Museu José Malhoa em torno da minha foto “ORLAN uma grande odalisca de Ingres”, que fazia parte da série Tableaux Vivants onde a fotografia foi reproduzida em diferentes formatos, dispostos no espaço sob almofadas penduradas no teto. O meu objetivo através desta instalação era questionar a noção de escala inerente ao meiofotográfico e questionar os acessórios femininos estereotipados do quadro de Ingres.
Durante a inauguração, realizei duas performances. Uma foi a ação “ORLAN-Corps Mesurage d’Institutions et de Rue” que pratico desde 1974. Consiste em usar o meu corpo como um novo instrumento de medida. A ideia desta performance foi assumir a teoria de Protágoras “O homem é a medida de todas as coisas”, declarando “O humano é a medida de todas as coisas”, aplicando-a de forma muito concreta a um método pseudocientífico de medição.
Mas, acima de tudo, realizei pela primeira vez a minha performance, “O beijo da artista”. A partir de um texto que escrevi “Face a uma sociedade de mães e marchants”, questionei a santa e a prostituta, Maria e Maria Madalena, dois estereótipos de mulheres dos quais é muito difícil escapar quando se é mulher.
Sobre uma base de madeira pintada de branco estava à esquerda a minha efigie em Sainte-ORLAN, uma foto minha a preto e branco colada numa madeira e recortada, vestida como uma madonna com os lençóis do meu enxoval. À direita, de pé na base, vendia um beijo de artista, um verdadeiro beijo francês que durou 20 segundos por "20 escudos".
Esta é a primeira versão simplificada daquela que foi, durante a FIAC de outubro de 1977, a performance que marca o ponto de viragem na minha carreira.
Nessa viagem conheci excelentes artistas como Albuquerque, Álvaro, Azevedo, o grupo Puzzle… que convidei para o meu primeiro simpósio internacional de arte performativa em Lyon, em 1979.
ORLAN, O Beijo da Artista, 1977
A arte performativa, esteve na génese da sua carreira nos anos sessenta, nomeadamente com as performances – “ORLAN dá à luz a si mesma” (1964) e “Tentativa de sair do quadro” (1965). A nudez do seu corpo foi uma estratégia para chamar a atenção para o estatuto do corpo da mulher na sociedade vigente? Foi o desejo de quebrar barreiras e regras que eram absolutamente castradoras na cultura ocidental?
Podemos considerar estas duas obras performances não públicas, mas foram projetadas para a fotografia. Comecei a minha carreira com a escultura, desenho e pintura, depois considerei o corpo como um material entre os materiais.
Nas “Esculturas-corpos” coloquei em cena o meu corpo, muitas vezes sem identidade, porque o meu cabelo, ou uma máscara, ou a sua posição, escondiam o meu rosto. O que era importante para mim era considerar o corpo como uma escultura e fazer poses que não eram as habituais e estavam fora dos estereótipos de sedução feminina. Então tirei muitas fotografias em posições incríveis, rebeldes, outras… assumindo plenamente a minha nudez, a minha sensualidade, a minha sexualidade.
“ORLAN accouche d’elle-m’aime-A.I.M.E.” (Orlan dá à luz o seu amor-próprio-A.M.O.R.) é uma obra manifesto de 1964 onde assumo que esta é a data do meu nascimento, do meu renascimento. Foi quando comecei a criar-me e a recriar-me, a inventar-me, a afirmar algo, a situar-me entre as palavras de ordem, e a perceber que tinha de me libertar de imposições. Não dou à luz uma criança, mas um objeto artístico andrógino que fala de identidade e de alteridade, de duplicação, de clonagem e de emancipação.
Ao mesmo tempo, o meu nome ORLAN, faz parte da minha reinvenção. Tudo o que produzi é uma rutura com a filiação, com o nome do meu pai e com o corpo da minha mãe. Tentei emancipar-me da formatação parental, da minha classe social e do meu ambiente.
“Tentativa de sair do quadro” é o que tentei fazer a minha vida inteira. Para mim é uma obra muito importante e premonitória. O quadro representa a formatação, o pronto-a-pensar, as conquistas da infância e do nosso ambiente.
ORLAN, Tentativa de sair do quadro, 1965
Quando afirma, “O corpo é político… O corpo converteu-se num lugar de debate publico”. Onde quer chegar com estas afirmações?
Eu trabalho o estatuto do corpo na sociedade, com todas as pressões : culturais, tradicionais, políticas e religiosas que estão impressas nos corpos, e em particular no das mulheres. Mostro como o corpo é um meio artístico, político e social, principalmente o corpo da mulher porque o corpo é político, o privado é político, tudo que dizemos, tudo que fazemos é político.
Vê a Arte como uma utilidade?
Existem vários tipos de artistas. Há artistas que fazem obras para decorar apartamentos ou para ganhar dinheiro e outros que estão mais dedicados a causas sociais e do meio ambiente e que tentam mudar as coisas, eu sou um desses artistas.
Toda a minha vida lutei no privado e no público pela emancipação das mulheres e pela mudança das mentalidades e assim, participar na construção de outro mundo, um mundo melhor.
E gosto de citar Nietzsche dizendo “A arte existe para que a realidade não nos destrua”.
Ao colocar em debate os cânones de beleza estabelecidos pela sociedade, defende que a mulher tem o direito de se reinventar, de encontrar soluções pessoais para que se sinta bem com a sua identidade. Surge, dessa forma, um novo capítulo na sua carreira - Operações-cirúrgicas-performativas, em que recorre à cirurgia estética, desdramatizando a sua utilização na exploração de novos caminhos. Fale-nos dessa experiência.
A beleza não existe em si. É fruto da nossa perceção pelo ambiente em que nascemos e daquele que construímos, que nos faz encontrar algo belo ou não. Na minha série de auto-hibridação africana, trabalhei a partir de fotografias etnográficas. Criei uma obra manifesto hibridizando-me com a representação de uma mulher negra com um enorme labret (ornamento labial em forma de disco plano) que é magnífica e muito segura da sua sedução, porque nessa época, na história de sua tribo quem tinha o maior labret ficava com os homens mais bonitos. Se hoje, tivéssemos labrets, todos se afastariam de nós, estaríamos fora do campo da sedução, porque a beleza é apenas uma questão de imposição da ideologia dominante num ponto geográfico e histórico.
Criei a “Reencarnação de Sainte-ORLAN” ou “Imagens novas chamadas operações-cirúrgicas-performativas” para separar a cirurgia estética do conceito de melhoria e rejuvenescimento, e fazer uma operação cirúrgica que não pressupõe trazer beleza, mas defeito, monstruosidade, indesejabilidade.
A primeira ideia destas operações cirúrgicas surgiu quando li o livro “La robe”, de Eugenie Lemoine-Luccioni, psicanalista lacaniana, foi quando tive a ideia de lutar contra os estereótipos de beleza impostos particularmente às mulheres. Pensei que no nosso tempo começamos a ter os meios para trazer a imagem interna para a imagem externa. Não sou contra a cirurgia estética, mas contra o que fazemos com ela. Usei a técnica da cirurgia para fazer dela uma invenção de mim, um autorretrato, uma autoconstrução.
Para cada performance decorei o bloco operatório que se tornou o meu ateliê e fui vestida por um grande criador. As performances foram orquestradas com leitura e sempre que o processo operatório o permitia, realizava vídeos, fotografias, desenhos, com o meu sangue e com os meus dedos.
No dia 21 de novembro de 1993, em Nova Iorque, aconteceu a 7ª operação de performance cirúrgica chamada “Omniprésence”. Foi transmitida ao vivo via satélite no Centro Georges Pompidou e noutros museus do mundo. Coloquei nas minhas têmporas, implantes que geralmente são postos para levantar as maçãs do rosto. Se não me vissem, podiam realmente pensar que sou um monstro, abominável, indesejado. Esses inchaços, esses horrores, tornaram-se órgãos de sedução…é o meu descapotável!
Orlan, Opération omniprésence, transmitida ao vivo via satélite no Centro Georges Pompidou entre outros museus do mundo, 1993
O que torna a Arte Carnal diferente da Arte Corporal ?
Recusei sempre ser associada à Arte Corporal que trabalha com a dor e a resistência. Os corpos há milénios sofrem sem haver um medicamento para controlar a dor. Para mim a dor é anacrónica e o sofrimento não é obrigatório, é opcional. É claro que sou contra esta opção, sou a favor do prazer do corpo. Alguns artistas com esta opção criaram obras muito interessantes (Marina Abramović, Jan Fabre…) mas esta não é a minha abordagem. Então, escrevi o meu Manifesto de Arte Carnal e no dia 30 de maio de 1990, numa igreja dessacralizada chamada “Todos os Santos”, em Newcastle, Inglaterra, durante um ritual-performativo inaugural e lendo o meu Manifesto, anunciei a minha decisão de realizar as “operações-cirúrgicas-performativas”. A primeira condição com os diferentes cirurgiõe.ã.s foi, sem dor.
Afirma, que desenvolve a maior parte das suas obras, com base no que lê. Criar para si, é uma necessidade fisiológica? Concorda com Gilles Deleuze quando afirma que, “Um criador só faz aquilo de que tem absoluta necessidade”?
Os textos, as palavras, os livros sempre fizeram parte integrante das minhas criações, por influência do meu pai que sacralizou os livros numa biblioteca fechada à chave e à qual eu não tinha acesso. Leio desde muito pequena. Foi uma das minhas primeiras aberturas para o mundo e para a minha emancipação. Na “Littérature pour se tenir bien droite” coloquei-me em cena com pilhas de livros que tinha no meu atelier. O conceito era demonstrar como a leitura me permitiu estar certa, falar alto e forte, com conteúdo, graças ao conhecimento. Esta iniciativa permitiu emancipar-me da minha classe social trabalhadora, pouco educada, para alcançar um capital cultural e intelectual mais elevado. Foi o começo da minha reconstrução interna. Já em “ORLAN debout dans son carcan de livres” (ORLAN na sua camisa de forças de livros) mostrei o quanto a literatura faz sofrer e impede o corpo de se movimentar.
Assim, enfatizando todas as minhas “operações-cirúrgicas-performativas”, leio este estrato do livro “La robe”: “... a pele é dececionante […] na vida só temos a pele […], mas existe algo de errado nas relações humanas porque nunca somos o que temos […] ; tenho uma pele de anjo, mas sou um chacal, uma pele de crocodilo, mas sou um cachorrinho, uma pele de negro, mas sou um branco, uma pele de mulher, mas sou um homem; nunca tenho a pele do que sou, não há exceção à regra porque nunca sou o que tenho.”
Em todas as civilizações e de acordo com os parâmetros impostos à época, o ser humano tinha a preocupação de modelar o seu corpo, mudar a aparência. Nem sempre esses cânones tinham a ver com o ícone de beleza, mas por vezes relacionavam-se com o estatuto social, económico e de prestígio. Entre 2000 e 2008 a sua reflexão sobre os padrões de beleza recaiu nas culturas não ocidentais: a pré-colombiana, africana, ameríndias e chinesas que deram origem a séries de “Auto-hibridação”. Nesta fase da sua carreira, era importante afastar-se da cultura ocidental e procurar compreender a evolução de outros povos e culturas, com os seus enigmas muito particulares?
Com efeito podemos dividir o meu trabalho em três fases: a primeira fase é uma interrogação da minha cultura ocidental judaico-cristã sobre todos estes códigos e imposições. A segunda fase é uma transição. São as “operações-cirúrgicas-performativas”, porque elas colocam de novo em jogo todas as imagens, incluindo a minha própria imagem com imagens novas que são o resultado destas performances.
A terceira fase da minha obra é a série das “auto-hibridações” que são as primeiras obras pós-operatórios e que questionam as culturas não ocidentais.
Tenho viajado muito na minha vida para conseguir compreender o mundo e lutar contra o etnocentrismo e estas obras são o fruto disso. No computador eu hibrido esculturas, fotografias e pinturas de outras civilizações que admiro para criar uma proposta, um novo tipo de beleza.
A hibridação não é só 1+1, é a ideia de que as forças de um e de outro juntas, fazem uma terceira obra que não poderia existir sem as outras duas.
Fiz hibridações pré-colombianas, africanas, ameríndias, chinesas e recentemente maias.
As deformações corporais são muito importantes para mim. Todas as civilizações quiseram fabricar os corpos. Claro que não somente os corpos, mas também o que está na cabeça. A deformação craniana, por exemplo, é para todas as castas sociais, tanto para os pobres como para os ricos e também para os homens e para as mulheres. É uma modificação que encontramos nos africanos, nos pré-colombianos, nos egípcios. Os peritos do museu disseram-me O que é que procura aqui tão longe sobre os crânios deformados, tem outros tão perto de si!... Muito surpreendida disse O quê? Responderam-me, Os merovíngios fizeram isso! Observe a região de Albi, em França, tem a famosa “Virgem com o menino de Rabastens”, onde os crânios da criança e da virgem, estão deformados. Assim veja, acreditamos que isto só acontece com os outros… mas nós fizemos o mesmo.
ORLAN, auto-hibridação com figura Maia Antropomórfica, 2022
"Je t’autorize à être moi, je m’autorize à être toi" é uma nova série de imagens criada na continuidade da “auto-hibridação” e agora apresentada em 10 edições no CPS. Podemos considerar esta fase da sua carreira, um reforço mais direto e interventivo pela luta das causas feministas, pela defesa dos direitos das mulheres e do seu reconhecimento na sociedade?”
Atualmente estou inconsolável. Tenho a impressão de que a minha vida não serviu para nada, porque após alguns avanços está tudo a voltar a fechar-se.
Como é que hoje não é possível mostrar um corpo, um seio feminino no instagram ou facebook sem que a publicação seja apagada ou desfocada? Para mim é aberrante.
Hoje sofremos com tirania e censura, como quando as obras-primas de Miguel Ângelo foram cobertas na Capela Sistina. Como é possível que o aborto, a contraceção ou o casamento para todos seja colocado em causa? A Igreja finge estar dissociada do Estado, e em relação à nudez, é muito estranho que aqueles que acreditam em Deus, se permitem interferir na vida dos outros, especialmente se aceitam que, “Deus criou os seres humanos à sua imagem”. Então, precisamos de mostrar estas obras-primas como uma forma de prestar homenagem a Deus.
Não pedimos aos que não querem fazer amor antes do casamento que não se casem, ou que se divorciem, ou que façam um aborto, ou que sejam homossexuais. A questão deveria ser totalmente simétrica e recíproca que ninguém se meta na vida privada do outro. Mas as religiões são feitas pelos homens e para os homens de forma a manter o patriarcado e a misoginia, dividindo-as e criando comunidades que acreditam deter a verdade e fazem a guerra.
As consequências são graves porque o feminismo não mata, mas o patriarcado sim. Adorava poder questionar outros fenómenos da sociedade, mas quando olhamos para o mundo atual, sinto-me obrigada a continuar o meu combate. É por isso que trabalho sobre uma nova série de hibridações “Je t’autorise à être moi, je m'autorise à être toi”, que é também uma frase de uma das canções do meu álbum.
São Femmages às mulheres da história que admiro e que, muito antes de mim, defenderam as mesmas causas e, por vezes, nesse combate perderam a vida, ou, foram pioneiras, muitas vezes esquecidas, apagadas ou sub-representadas.
Este gesto de hibridação para com o outro, permite-me em toda a sororidade, dar-lhes um beijo de artista e criar um encontro entre mulheres, apesar do tempo que nos separa.
ORLAN, Hedy Lamarr (Série Femmage), Edição CPS, 2024
Ao realizar edições com o CPS, acha importante estabelecer uma proximidade com o público colecionador de obra gráfica original? Interessa-lhe procurar novos públicos e tornar a sua obra mais universal?
A situação melhorou, mas não o suficiente para a representação das mulheres na arte. Em última análise, é sempre o mesmo: encontramos poucas mulheres no principal mercado ou no ranking. O sistema artístico é um reflexo da sociedade e não apoia as mulheres. Sabe o que dizem as Guerilla girls? “Ser mulher artista é fantástico porque a nossa carreira pode explodir aos 80 anos!”.
Os artistas masculinos vendem mais e são mais caros. Existem muito poucas mulheres no topo do mercado internacional. Para além disso, muitas mulheres impedem outras mulheres, porque fomos ensinadas a odiar-nos e a competir umas contra as outras. O movimento #MeToo fê-lo muito bem. Mas em França, assim que o feminismo dá um passo, há sempre um retrocesso enorme. Houve até aquelas 100 signatárias, mulheres que tinham como objetivo silenciar as lutas feministas, sem qualquer compaixão, sem qualquer sororidade para com as mulheres que começaram a falar, e que de repente foram ridicularizadas. Esta e uma violência sem nome para mim!
Foi por isso que fiquei muito feliz com a sua iniciativa, Alexandra, em apoiar as mulheres artistas, expô-las e aproximá-las do grande público. Fiquei muito contente com esta colaboração e por poder reencontrar o público português. Nunca fiz uma obra sem pensar nela como um corpo que procura outros corpos para existir. Tenho sempre uma grande preocupação com o público, não quero deixá-lo para trás. Tento construir pontes e frequentemente interagir com ele e questioná-lo sobre o seu pronto-a-pensar, as suas prioridades.
Podemos afirmar que a ORLAN é uma artista multimédia que se interessa pela tecnologia e procura utilizar as diferentes técnicas para concretizar as suas criações?
Não sou técnofila nem técnofoba, mas adoro viver com os avanços tecnológicos do meu tempo. Quando era adolescente, nos meus sonhos mais loucos nunca iria imaginar que um dia teria um android no bolso que me diria, por exemplo, onde estava, a que distância de um museu que queria visitar e a quem poderia colocar uma grande quantidade de questões às quais na maioria das vezes os adultos não me sabem responder ou respondem-me de uma forma evasiva. Desde muito cedo que me interessei pelo início do vídeo, do minitel, precursor da internet, e nesse seguimento, criei obras em realidade aumentada, mas nunca para utilizar simplesmente uma tecnologia, mas porque esta tecnologia me permite dizer algo mais assertivo. Por exemplo com a realidade aumentada digitalizei o meu corpo. De seguida articulei-o e programei-o para que fizesse as acrobacias da Ópera de Pequim, porque na Ópera de Pequim as mulheres são interditas e são os homens que fazem o papel de mulher. Da mesma forma, criei “tentativa de sair do quadro”. Eu queria graças ao meu avatar, sair da obra “auto-hibridação” do meu rosto com as máscaras da ópera que servem como código QR. Você pode fazer o meu avatar aparecer, vê-lo fazer acrobacias, fotografar-se com ele e enviar essas fotografias para o mundo inteiro. Uso estas novas tecnologias unicamente para transmitir algo essencial da obra, mas de outra forma.
Estou prestes a pôr em prática a minha própria Inteligência Artificial (IA) que poderá fazer obras por mim, segundo o meu protocolo post-mortem.
Parece-me muito importante enquanto mulher, questionar outro fenómeno da sociedade para além da robótica e da IA. Em 2018 para a exposição “Artists and Robots” no Grand Palais, criei um robot, uma escultura que se movimenta à qual chamei “Orlanoide”. Tem a inteligência artificial combinada com a inteligência coletiva e social. É constituída por um gerador de movimento e por um gerador de texto. O robot parece-se comigo, fala com a minha voz e lê simultaneamente todos os textos gerados por um gerador de texto em grandes telas. Trata-se de uma obra em work in progress e posso levá-la para as minhas conferências para que o robot possa traduzir simultaneamente tudo o que digo em inglês ou português. Graças à IA, responde a todas as questões do público, como se fosse eu, de acordo com os meus gostos, as minhas opiniões, a minha vida. Atualmente e na continuidade do meu robot, estou a trabalhar num holograma interativo.
Criação do "Orlanoide" para a exposição Artists and Robots, no Grand Palais, em Paris (2018), um robô à imagem da artista que combina a inteligência artificial com a inteligência coletiva e social.
Se a Arte está fora da lei, da resistência, não impõe limites. Hoje é mais difícil para um artista o ato de criar, uma vez que existe uma infinidade de técnicas, materiais e acesso fácil à informação? Está expectante quanto ao futuro?
Na época em que comecei a trabalhar não tínhamos acesso fácil à informação. Não conhecia ou conhecia muito pouco os outros artistas da performance. Nesse tempo, é preciso ter em mente que, não havia internet, as revistas eram escassas, existiam poucos espaços onde era possível ver arte contemporânea. Antes dos anos 80, a arte contemporânea estava apenas no início, e isso era particularmente verdade em França e especialmente fora de Paris.
Por exemplo, quando a artista performativa Valie Export me convidou para dar uma conferência em Berlim, na universidade onde ela era professora, após o começo da minha carreira em 1996, ficámos muito surpreendidas quando nos demos conta das numerosas semelhanças entre algumas das nossas performances realizadas mais ou menos nas mesmas datas bem como pelo facto de que ambas escrevíamos o nosso nome em maiúsculas. Contudo, quando ela adotou esta grafia, nunca tinha ouvido falar de mim e eu também nunca tinha ouvido falar dela.
Atualmente, estamos todos interconectados onde quer que estejamos. É formidável! E todas as opiniões técnicas são sempre uma mais-valia, mas tudo depende de como as usamos, da qualidade do artista e dos seus conceitos.
Paralelamente à sua carreira como artista, tem partilhado os seus conhecimentos e conquistas em inúmeras conferências em escolas e universidades de artes. O contato e proximidade com os mais jovens acaba por ser um estímulo para o seu trabalho. Considera que o público em geral está mais recetivo à compreensão da sua obra?
O ensino para mim foi como passar para o outro lado da barreira. Uma vingança da mulher que se fez totalmente sozinha e muito orgulhosa, contra ventos, marés e fora da sua classe social, fora do que lhe estava destinado.
No início, dei aulas privadas de artes plásticas, a crianças e adolescentes. Depois, de expressão corporal, de dicção e de teatro a jovens. Mais tarde, de pintura em diversas organizações. Ensinei arteterapia, trabalhei com pessoas de idade, prisioneiros e prisioneiras, estudantes de escolas de belas-artes. Frequentemente faço workshops e muitas conferências pelo mundo inteiro. Quando ensinava nas escolas superiores de belas-artes nacionais, adorava dar a palavra aos estudantes, entrar nas suas lógicas para de seguida os ajudar dando-lhes todas as informações que possuía sobre as suas problemáticas, oferecendo-lhes pistas de pesquisa fora de um ensino rigoroso e convencional. Informá-los sobre a história da arte e do mundo da arte.
Era capaz de falar para uma turma durante horas, de tal maneira que os meus alunos me chamavam “O Fidel Castro da arte!”
Ensinei muito e adorava este trabalho de constante questionamento, de transmissão, de trocas exaltadas e de debates acesos. É verdade que me reconhecem na rua, quer seja no metro, em Paris, em Macau, em Luçon, em Shangai ou em Craponne-sur-Arzon. O Narciso não fica ofendido! E gosto muito de ter tempo, para falar com as pessoas que me abordam, que querem tirar fotos e querem um autógrafo, porque levantei tantas questões que tenho de dar a cara, não posso fugir. Muitas pessoas reconhecem-me e conhecem as minhas obras, porque a minha obra figura no programa das escolas, liceus e universidades. Fico feliz por ver que hoje é difícil ignorarem o meu trabalho visto que abordo o corpo, a performance, a hibridação, o barroco, as biotecnologias ou a inteligência artificial e a robótica… além disso, não é comum no meio das artes plásticas que os.as artistas sejam reconhecidos.as como celebridades na rua.
Vídeo da exposição "Je t’autorize à être moi, je m’autorize à être toi" na galeria do CPS no CCB, Lisboa, 2024
Convocando mais uma vez a sua originalidade sem limites, que mensagem gostaria de partilhar com o público?
Estou sistemática e ininterruptamente a repensar-me, a prefabricar-me, a reinventar-me. Pensar é sempre pensar contra si. Quis sempre emancipar-me e depois emancipar-me de novo da minha própria anterior emancipação e desejo a todos que façam o mesmo. Que sejam críticos, curiosos e que estejam sempre alerta.